O Leite nos últimos 10 anos
A pecuária leiteira do Brasil nasceu em 1532, quando a expedição colonizadora de Martim Afonso de Souza trouxe da Europa para a então colônia portuguesa, precisamente para a vila de São Vicente, no litoral paulista, os primeiros bois e vacas. Nestes quase cinco séculos de existência, a atividade caminhou morosamente, sem grandes evoluções tecnológicas. A partir de 1950, coincidindo com o surto da industrialização do país, a pecuária leiteira entra na sua fase dita moderna, mas mesmo assim o progresso continuou muito tímido, não se verificando nada de estrondoso que mudasse radicalmente o status quo.
No final dos anos 60, o rumo das coisas começa a se alterar, quando o revolucionário leite tipo B ganha expressão nacional. Entretanto, o salto mais qualitativo da pecuária leiteira aconteceu somente por volta de 1980. Daí em diante, o setor exibiu um dinamismo que nunca tinha tido, possibilitando afirmar que os progressos que teve em apenas duas décadas foram maiores que o dos últimos 500 anos. Raríssimos setores da nossa economia mudaram tanto em tão pouco tempo, e essa constatação fica patente quando se nota a ocorrência em apenas quinze anos de quatro ciclos distintos de notáveis mudanças.
1 - LIVRE MERCADO
Esse ciclo começa exatamente no dia 13 de julho de 1990, quando a histórica portaria 43, da extinta Sunab, decreta o fim do tabelamento do leite no Brasil. Essa era apenas uma de outras drásticas medidas econômicas, financeiras e fiscais, tomadas pelo recém eleito Presidente Fernando Collor para modernizar a economia e abri-la à concorrência mundial. A mais radical de todas foi o inédito confisco monetário com o intuito de combater a inflação.
Embora necessário e reivindicado pelos agentes do mercado, o fim do controle dos preços do leite pelo Governo, pegou o setor da produção desprevenido. Habituado há mais de 40 anos a esse sistema de remuneração, os produtores não se articularam da forma que era necessária para a chegada desse dia. A culpa cabe também ao Governo, por ter tomado uma medida de grande impacto de maneira totalmente improvisada, sem os devidos preparativos sob o ponto de vista organizacional. Essa medida, que deveria ser resultado de um processo lento, gradual, negociado, veio abruptamente. O impeachement do presidente Collor explica por si só o caos que era a administração pública naquela época.
Não apenas por essas circunstâncias que o fim do tabelamento foi crítico para os produtores. Também contribuiu a renitente desunião da classe, incrementada pela dispersão geográfica das bacias leiteiras, pelo incontável número de produtores e pela natural resistência que eles têm a toda forma de organização classista. A justificativa desse comportamento está na forte influência dos antigos povos ibéricos, para os quais quem tem terra é rei, basta por si mesmo, na formação cultural do pecuarista brasileiro.
Em número muito menor, e mais bem organizadas, as indústrias de laticínios saíram-se melhor na era do livre mercado, puxando para si as vantagens. Por exemplo, no leite tipo B, onde as margens dos laticínios e produtores no preço de venda do produto eram previamente definidas de comum acordo pelas partes, depois do fim do tabelamento, passou a ser imposta unilateralmente pelos laticínios. Foi o tempo da famosa “consignação”, que representou grandes perdas para os produtores, exceto para aqueles que faziam parte de cooperativas.
Até hoje, a pecuária leiteira não se recuperou dos traumas do descongelamento. Uma vez que agora os preços do leite são determinados pelo mercado, no qual são os supermercados que dizem o valor máximo que podem pagar, os produtores, pelas causas acima apontadas, não têm mais como definir os preços que necessitam receber, de acordo com seus custos. Hoje eles se comportam como tomadores de preços, diretamente fixados pelos laticínios e indiretamente pelo mercado. A única maneira de sair de impasse é voltar novamente ao governo federal, através da criação da Câmara Setorial do Leite, com o poder de administrar os conflitos de interesses e evitar que um segmento tenha mais benefícios do que o outro.
Os anos 90 foram muito ricos para o Brasil e para a pecuária leiteira. Embora a abertura econômica tenha provocado grande desnacionalização das empresas brasileiras e invasão de produtos estrangeiros em nosso mercado, como os lácteos, fazendo com que o país se tornasse pátria mundial desses produtos, situação interrompida graças às alíquotas compensatórias colocada nos lácteos estrangeiros mediante ação da Leite Brasil/CNA, por outro lado ela obrigou a atividade a se tornar mais profissional, pois essa é a lei da globalização econômica. As novas normas de produção de leite e derivados, recentemente editada pelo Ministério da Agricultura, são filhas diretas dessa nova ordem planetária.
2 – LEITE LONGA VIDA
Pilotando um Brabhman, em 1980, Nelson Piquet ganha nos EUA sua primeira corrida de Fórmula 1. Era o início de uma carreira que levaria o piloto brasileiro a ser em 1987, tri-campeão mundial da categoria e também garoto propaganda de um produto que mudaria para sempre a pecuária leiteira nacional: o leite longa vida. A vitória do produto, comandada pela Parmalat através de maciça propaganda com Nelson Piquet, e mais recentemente pela “Campanha dos Bichinhos”, foi favorecida por mudanças na estrutura social do país na década de 80, quando o papel da mulher muda radicalmente. Os elevados gastos da educação dos filhos, obriga a dona de casa a deixar o núcleo familiar para disputar o mercado de trabalho.
O bom exemplo dessa nova ordem é a queda tremenda da taxa de natalidade. Segundo o IBGE, em 1940 era de 6,2 filhos por mulher, que passa para apenas 2,3 filhos em 2000, como prova a explosão das vendas de pílulas anticoncepcionais. São lançados os fornos micro-ondas, a comida congelada chega aos lares, as redes de fast foods invadem o país, entram em circulação os vales refeições. Sem muito tempo para as tarefas domésticas, a mulher precisava também no café da manhã de um tipo de leite que a livrasse de ir todo dia à padaria. O leite longa vida chegou e atendeu aos seus anseios. Os supermercados passam a ser os grandes vendedores desse tipo de leite.
No início da década de 80 o leite C e o B eram líderes do mercado consumidor das regiões metropolitanas. O leite tipo A começava a disputar a preferência dos compradores. O leite longa vida chegou de mansinho e pouco a pouco foi deixando os concorrentes para trás, até se tornar hoje, no leite mais vendido no país. A taxa de crescimento no período 1990-2002 foi de aproximadamente 30% ao ano (ver gráfico 1) O predomínio é absoluto: 74% do mercado brasileiro de leite fluído. O Brasil tornou-se um dos seus maiores consumidores do mundo. Pesou também nessa situação a ausência total do leite pasteurizado na mídia, o que deixou o caminho livre para o longa vida ser o que é hoje.
O ciclo do longa vida provocou vários fenômenos na agroindústria leiteira, como a expansão das bacias leiteiras para regiões que antes não tinham expressão nacional na atividade, como as do centro-oeste e do norte. O longa vida extinguiu o caráter regional das marcas de leite, pois agora ele pode ser produzido num pequeno município e vendido em outros a milhares de quilômetros de distância. Só no Estado de São Paulo o consumo atual é de 43% e na Grande São Paulo, aproximadamente, 25%.
Outro fenômeno está nas embalagens. Antes imbatíveis como sistemas de envase, os saquinhos plásticos, por questões tecnológicas, não resistiram ao furacão longa vida em suas embalagens cartonadas. Hoje os saquinhos plásticos atendem mais a pequenos laticínios com suas marcas regionais. Para a velha geração, a imagem mais autêntica do leite era as saudosas garrafas de vidro. Para a nova, é a caixinha. Essa mudança cultural deve-se também a um trabalho de marketing muito bem feito pelos fabricantes das embalagens e pelos laticínios que vendem o leite longa vida. Como diz o velho ditado, a propaganda é a alma do negócio.
3 - COLETA A GRANEL
O mel é o único alimento de origem animal que não se estraga. Em contrapartida, leite é o que se estraga mais rápido. Ele pode ser totalmente destruído em pouco tempo pelas bactérias sedentas de seus riquíssimos nutrientes. Por isso, sem dúvida alguma, o leite é o produto que exige a logística mais perfeita de transporte. Qualquer erro é fatal para a sua qualidade.
Os avanços da pecuária leiteira do Brasil nesse aspecto foram lentos e por etapas. Na década de 50, empregavam-se grandes quantidades de barras de gelo nos vagões de trens para que o leite pudesse sair dos laticínios e chegar nas grandes cidades em condições razoáveis de consumo. Quando o trem atrasava ou quebrava, tudo era perdido. A introdução no final dos anos 60 dos caminhões tanques isotérmicos e das geladeiras nas fazendas, como exigia a legislação para o leite B, melhorou bastante a condições do transporte e a qualidade do leite.
O primeiro passo do Brasil num sistema mais moderno de transporte, igual ao que já existia nas nações mais evoluídas, ocorreu em 1976., na Cooperativa de Laticínios de São José dos Campos, no Vale do Paraíba. Pela primeira vez no país, o leite de um grupo de produtores era enviado das fazendas para a usina da cidade num caminhão equipado com tanque refrigerado. Inicia-se assim a chamada coleta do leite a granel, supra-sumo entre os sistemas de transporte de leite. Finalmente, o leite ganhava condições de manter-se numa cadeia de frio desde a fazenda até os pontos de vendas nas cidades.
A coleta granelizada não pegou imediatamente. Os velhos latões de ferro pareciam invencíveis. Eles permaneceram no mercado por mais três décadas. Os motivos da demora da universalização da coleta a granel eram variados, principalmente a precariedade ou inexistência de estradas, falta de rede de energia elétrica nas propriedades, custo da implantação do sistema. Poder-se-ia falar também que não havia um “forte motivo” entre os produtores para a adoção do novo método de circulação do leite. Estávamos na época em que a cultura do setor era a de punir pela baixa qualidade e não premiar pela alta. Falar em pagamento pela qualidade era quase que uma heresia.
A decolagem da coleta a granel só veio ocorrer na década de 90, quando uma palavra chave contaminou a economia brasileira e mundial: globalização. A ordem agora era ser moderno, competitivo, estar preparado para enfrentar a concorrência. Acontece o “boom” da informática e da internet. O Brasil cria o Código de Defesa do Consumidor. A sociedade passa a ter uma postura mais crítica em relação aos produtos que compra. O lançamento do Plano Real, que venceu o dragão inflacionário, levou as empresas de laticínios a buscarem seus lucros mais na parte operacional do que na especulativa. Reduzir custos era uma questão de sobrevivência.
Esse cenário foi o estopim da disseminação da coleta a granel no Brasil a partir do último decênio do século passado. Várias multinacionais fabricantes de tanques de expansão chegam ao Brasil, fazendo concorrência com as que já estavam aqui. Hoje temos uma dezena de fábricas desses equipamentos. Antes eram menos de cinco. A técnica dissemina-se pela facilidade de aquisição dos tanques e pelos planos de financiamento.
Atualmente cerca de 80% do leite das cooperativas são captados dessa forma (ver gráfico 2). Em termos globais, incluindo os laticínios privados, o índice de coleta a granel chega a 60%. Um crescimento notável por dois motivos. Primeiro, pela monumental existência de 1 milhão de produtores, contra, por exemplo, os Estados Unidos (80 mil produtores) e Argentina (30 mil), onde o índice de granelização atinge 100%. Em segundo lugar, pela espontaneidade com que o fenômeno, liderado pelos laticínios, se verificou, antecipando-se à lei posteriormente criada. Como sempre, os fatos econômicos sempre vêm antes dos fatos jurídicos.
4 - CICLO DAS EXPORTAÇÕES
A rigor, não podemos falar ainda num ciclo das exportações de produtos lácteos brasileiros, já que ele não existe da forma como é preciso e com a pujança que se fará necessária no futuro. Mas nos adiantamos a essa circunstância porque esse ciclo certamente irá ocorrer, não porque nós queremos, mas porque é uma condição inerente à nossa pecuária leiteira devido à suas enormes vantagens comparativas em relação aos grandes países exportadores de lácteos, reconhecidas não apenas por nós, mas também pelas maiores autoridades no assunto.
Exceto a tradição, temos tudo que é preciso para vencer no mercado externo e essa trajetória ainda não se consumou porque a exportação nunca foi uma prioridade no setor, tanto para o Governo como para a iniciativa privada. Até aqui o alvo prioritário sempre foi o mercado interno, considerando que o consumo per capita da população brasileira é um dos menores do mundo. Mas certamente chegará o dia em que o consumo atingirá o ponto ideal e, como a produção nacional não cessa de crescer, a partir daí será obrigatório o setor procurar canais certeiros para o escoamento dos excedentes internos e nesse aspecto a exportação é única.
Quando falamos em vantagens competitivas, o primeiro ponto que se destaca é obviamente o custo de produção do leite brasileiro. Poucos países rivalizam conosco nesse item. Apenas a Nova Zelândia, Austrália, Argentina e Uruguai. No tocante ao potencial de produção, aí não temos competidores, como mostram os nossos 120 milhões de ha virgens para as explorações agropecuárias, sem precisar derrubar nenhuma árvore.
Nossos pontos fracos seriam a qualidade da matéria-prima e a falta da cultura da exportação entre as empresas de laticínios, mas esses fatores são facilmente removíveis; nosso leite melhora a cada dia que passa e a cultura da exportação se adquire com o passar do tempo. Basta praticar. Na verdade, o grande obstáculo é o protecionismo agrícola dos países ricos e pobres também, mas a esse fator limitante todos nossos concorrentes estão sujeitos.
Um ponto muito pouco lembrado, senão totalmente esquecido, quando se fala em exportação em geral pelo Brasil, é a ausência absoluta de uma política firme de apoio do Governo nesses negócios. Até aqui tem sido nula essa participação e quando tocamos nessa tecla estamos nos referindo diretamente ao Ministério das Relações Exteriores, o famoso Itamarati. O exemplo dos Estados Unidos ilustra bem nossas diferenças. O conceito de diplomacia deles é o oposto do nosso. Eles são muitos mais pragmáticos. Senão vejamos.
Nas principais embaixadas americanas existe a importante figura do adido comercial, cuja função precípua é abrir novas frentes comerciais para as empresas de seu país, a partir dos países onde elas estão instaladas. Os adidos comerciais fazem estudos de mercados, farejam oportunidades, enviam relatórios de tendências de preços e de produção, abrem contatos com empresas importadoras, enfim, agem como verdadeiros negociantes.
Já os nossos diplomatas não têm essa virtude profissional. Eles mostram-se mais interessados com os aspectos sociais e burocráticos da representação, com recepções e coquetéis solenes, que nada geram de bom para a economia do Brasil. Pelo contrário, só dão despesas. É preciso remodelar o Ministério das Relações Exteriores, adaptando os diplomatas às necessidades dos novos tempos. Para complicar mais a situação, os embaixadores geralmente são guindados a seus postos não por competência, mais por interesses políticos, como mostram casos recentes.
Por ora, as exportações lácteas brasileiras são ínfimas. Nos últimos anos não passaram de US$ 25 milhões. Mas bastou um pequeno esforço, em 2002, para pularem para US$ 40 milhões (ver gráfico 3).
Dizem os especialistas da área, que com pé nas costas, podemos chegar a US$ 500 milhões até 2010. Ainda é muito pouco, pois o complexo da soja exporta por ano US$ 8 bilhões. O Brasil tem tudo para ser grande exportador de lácteos e esse ciclo somente não acontecerá se o setor continuar virado de costas para o mercado externo, achando-o fora do seu alcance.
Esse é o maior desafio da pecuária leiteira nos dias atuais: ter no mundo globalizado uma presença agressiva e permanente, e não marginal como tem sido até agora. A melhor forma de fazer essa inserção é seguir o mesmo caminho de outros países, que criaram uma organização exclusiva para essa tarefa. A Nova Zelândia tem o competente New Zealand Dairy Board (NZDB). Outro aspecto é o mercado a ser conquistado. Quase metade da população mundial está na China e Rússia e nos países árabes (os maiores importadores de frango brasileiro) e africanos (“o Brasil tem corpo na América, mas o coração na África”), com os quais temos profundas afinidades. Esse é o caminho da mina. Devemos esquecer os Estados Unidos, União Européia, que além de protegerem a ferro e fogo seus produtores, estão entupidos de leite até o teto.