Fonterra: uma análise após 14 anos de criação - Parte I de II

03/09/2015
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“Potencialmente melhor do que um poço de petróleo” - alardeou o presidente fundador da Fonterra, John Roadley, em 2002. “Ouro branco” foi apelido favorito usado para descrever o leite na ocasião. Durante muitas décadas, a Nova Zelândia investiu massivamente no leite cru como um caminho para a prosperidade econômica. Foi por isso que a Fonterra foi formada. Porém, com o colapso dos preços internacionais decommodities lácteas e com o recente anúncio da Fonterra de baixos pagamentos pelo leite para as estações de 2014-2016, as metáforas de petróleo e ouro não parecem mais tão boas. Isso não era para acontecer.

Criada em 2001 por uma legislação especial substituindo a Lei do Comércio, aFonterra foi anunciada por líderes da indústria e assessores como um “ícone da transformação econômica”, uma “ideia revolucionária”, “ajudando a Nova Zelândia a aproveitar a onda de conhecimento” e “aumentando o valor da cadeia”. Como um quase monopólio de processamento de lácteos, captando 96% de todo o leite cru da Nova Zelândia, a visão era de que até 2011 a Fonterra geraria NZ$ 19 bilhões (US$ 12,06 bilhões) em novas receitas usando proteínas do leite e enzimas para fabricar produtos farmacêuticos, alimentos saudáveis, ingredientes especializados e alimentos de alta margem ao mercado consumidor. A companhia também forneceria ganhos de eficiência de pelo menos NZ$ 300 milhões (US$ 190,55 milhões).

Catorze anos depois, a Fonterra está fazendo fundamentalmente as mesmas coisas que fazia em 2001. Ainda coleta a maior parte do leite cru na Nova Zelândia e o transforma principalmente em leite em pó, queijos manteiga, que ainda vende na forma relativamente básica, em mais de 100 países. A companhia ainda tem negócios no exterior e parcerias em segmentos de mercado de maior valor, mas essas continuam sendo uma proporção relativamente pequena dos lucros totais, que não cresceram de forma significativa por muitos anos. As taxas de crescimento e de retorno da Fonterra estão bem aquém da previsão.

Então, o que mudou desde 2001? 

Em poucas palavras: volume e China. A produção de leite cru na Nova Zelândia aumentou 58%. Mais vacas (33% mais), mais leite por vaca (21% mais em média), mais terra usada para a produção leiteira (22% a mais), mais investimentos em plantas de processamento de leite, mais plantas e equipamentos nas fazendas, mais água para irrigação, mais dejetos, mais genéticas bovinas, mais manejo de pastagem, e, é claro, mais empréstimos. A dívida do setor leiteiro quase triplicou na última década, alcançando NZ$ 32 bilhões (US$ 20,32 bilhões) no ano passado.

Em resumo, a produção leiteira da Nova Zelândia se tornou consideravelmente mais intensiva e a produção de commodities e ingredientes de baixo valor, especialmente leite em pó, cresceu rapidamente. Porém, enquanto os volumes aumentaram, os custos também aumentaram. Por um longo tempo, a Nova Zelândia era o produtor de leite cru mais barato do mundo. Na última década, ou mais, o país perdeu esse posto para Argentina e o Estado de Victoria, na Austrália, com a Califórnia chegando perto.

Do lado da demanda, a grande mudança foi a China. A demanda por proteína de sua florescente classe média urbana aumentou rapidamente. Em 2013, as importações de lácteos da China aumentaram 50%. No mesmo ano, a Nova Zelândia forneceu mais de 70% das importações totais de lácteos da China. O Acordo de Livre Comércio da Nova Zelândia com a China de 2008 foi crucial.

No mercado de lácteos chinês, o leite em pó tem sido essencial: 90% de todas as exportações de lácteos para a China em 2014 foram de leites em pó e produtos derivados diretamente dos leites em pó. Trinta e quatro por cento das exportações totais de lácteos da Nova Zelândia em valor foram enviadas à China como leite em pó. O professor Keith Woodford, da Universidade Lincoln, disse no mês passado que “sem a China e sem os lácteos, a Nova Zelândia estaria de fato com problemas em longo prazo”. Entretanto, Woodford continua “muito confiante de que, em um prazo maior, a China virá ao resgate e a nossa indústria de lácteos florescerá”.

A Índia é outra forte potencial fonte de crescimento da demanda. Entretanto, Europa e Estados Unidos têm capacidade para aumentar suas exportações a um grau que pode facilmente reduzir quaisquer aumentos vindos da Nova Zelândia. Como destacou aInfometrics, firma de consultoria econômica, no ano passado: “Os produtores de lácteos do Hemisfério Norte ainda representam uma ameaça significativa em médio prazo”, particularmente com a abolição das cotas de produção de leite na Europa a partir de abril desse ano. A América do Norte é, talvez, uma ameaça ainda mais forte em médio prazo. O Canadá, em particular, tem potencial para aumentar massivamente a produção de lácteos baseado em sua produção barata de trigo.

Os preços internacionais das commodities lácteas deverão permanecer inerentemente voláteis e as previsões da Fonterra de ganhar a corrida pela participação de mercado não são garantidas. Certamente, houve outras mudanças e ganhos desde 2001, mas de uma perspectiva de um cenário maior, a Fonterra ainda está muito confinada a segmentos do setor de lácteos que fornece um retorno sobre os ativos de não mais de 5 a 8%. Colocando claramente, a companhia ainda é um “alimentador inferior”. Não houve transformação econômica, somente intensificação.

Como os produtores de leite e os outros se saíram? Para muitos produtores de leite durante grande parte dos 14 anos da Fonterra os retornos sobre os ativos e o patrimônio líquido das operações rurais foram baixos. Analistas disseram que poucas fazendas cobrem totalmente seus custos econômicos (que incluem terra, mão de obra e capital) com a produção. As fazendas leiteiras modelo do Ministério das Indústrias Primárias mostram excedentes contáveis nos ativos da fazenda de menos de 4,5% em média para 2008 a 2013. Os lucros e excedentes para reinvestimento foram muito variáveis.

No ano passado, o consultor da indústria, Peter Fraser, e dois colegas, disseram que os produtores aceitaram esses resultados não rentáveis como parte da “construção de uma participação” na indústria e de acumulação de bens que iriam, no devido momento, fornecer ganhos de capital não tributados. A partir dessa perspectiva, os produtores veem sua receita como suficiente se o fluxo de caixa cobrir os custos, retiradas e dívidas das fazendas, mas não necessariamente seu trabalho ou capital próprio. Como ex-governador do Reserve Bank, Allan Bollard observou em 2006: “Tem se tornado cada vez mais difícil tentar racionalizar os preços pagos pela terra usando estimativas do fluxo futuro de renda da terra”.

Peter Fraser e seus dois colegas também sugeriram que grande parte do crescimento nos volumes de leite cru são provavelmente não lucrativos. Eles supõem que os volumes aumentaram como resultado dos produtores e seus conselheiros terem um custo médio ao invés de uma abordagem de custo marginal. Fraser concluiu que a produção menos intensiva provavelmente seria mais lucrativa para os produtores e melhor para o meio-ambiente. O atual governador do Reserve Bank, Graham Wheeler, concordou com as preocupações no ano passado com relação aos maiores custos dessa intensificação nas fazendas requerendo maiores pagamentos pelo leite aos produtores para que se chegasse a um ponto de break even (sem ganhos nem perdas).

Em 2012, o Ministério de Indústrias Primárias estimou que fazendas leiteiras que estão entre as 10% superiores precisavam de um pagamento break-even de NZ$ 4,79 (US$ 3,04) por quilo de sólidos do leite – equivalente a NZ$ 0,40 (US$ 0,25) por quilo de leite; os que estão nos 10% inferiores precisam de NZ$ 6,96 (US$ 4,42) por quilo de sólidos do leite – NZ$ 0,58 (US$ 0,36) por quilo de leite. O Dairy NZ disse que o preço médio break-even agora é de NZ$ 5,57 (US$ 3,53) por quilo de sólidos do leite – NZ$ 0,46 (US$ 0,29) por quilo de leite. A estimativa revisada da Fonterra para 2015, de NZ$ 3,85 (US$ 2,44) por quilo de sólidos do leite – NZ$ 0,32 (US$ 0,20) por quilo de leite – causará real prejuízo para a maioria dos produtores.

Da perspectiva de um acionista da Fonterra, os resultados dos últimos anos foram ruins. O dividend yield (retorno com dividendos) variou de 1,3 a 8,6%, com uma média de 5,8%. Durante esse tempo, o preço das ações ficou em NZ$ 8,00 (US$ 5,08), mas agora está em torno de NZ$ 5,00 (US$ 3,17). Em temos de competição local, a Fonterra ainda é dominante nos mercados domésticos de leite cru. Somente três importantes competidores surgiram nos últimos 14 anos: Open Country, Synlait e New Zealand Dairies. Juntas, elas representam 12% do leite captado na Nova Zelândia.

No mercado doméstico, a Fonterra ainda é governada por regulamentações e leis detalhadas que determinam o preço pago aos produtores pelo leite cru e o preço que a Fonterra cobra de outros processadores para fornecer leite cru. A Comissão de Comércio está atualmente revisando o estado de competição da indústria de lácteos. O que significa “maior valor”? “Aumentar o valor da cadeia” não é uma visão nova para o setor de lácteos da Nova Zelândia. Os líderes da indústria vêm repetindo o mesmo mantra há pelo menos 25 anos.

Em 1989, o então presidente do Dairy Board, Sir Dryden Spring, determinou a meta de aumentar a proporção dos produtos com valor agregado “para perto de 100% como pudermos o mais rápido possível”. Mas o que isso significa? Alguns produtos lácteos têm maiores margens entre o preço de vendas e o custo. Alguns têm maior valor por quilo. Por exemplo, em 2012, o queijo blue vein, as fórmulas infantis, o leite condensado e as caseínas tiveram um valor de mais de US$ 9,50 por quilo. Em contraste, queijos, leite em pó e manteiga tiveram um valor de menos de US$ 4 por quilo.

Alguns dos passos que um produto dá para alcançar seu ponto de venda são mais valiosos do que outros passos. Por exemplo, de acordo com a firma de consultoria de gestão, Coriolis, o processamento de fórmulas infantis tipicamente ganha cerca de 30% sobre os ativos, mas fazer seus ingredientes de leite em pó ganha somente 9%. Em todo o mundo, as cooperativas de lácteos focam principalmente nos passos de menor valor do processamento de leite cru e vende ingredientes commodities que processam a partir disso. De acordo com a Coriolis, essa atividade gera retornos de não mais de 1-8% sobre os ativos e 1-4% sobre as vendas. Os preços para essas commodities lácteas também tendem a ser relativamente voláteis.

Em contraste, companhias de lácteos de capital aberto, como Nestlé, Danone e Kraft fabricam e vendem produtos lácteos com margens muito maiores – cerca de 15% ou mais. Os preços para esses produtos tendem a ser muito menos voláteis. E os riscos de negócios das companhias são muito mais amplamente disseminados. Para a Nestlé e a Danone, os produtos lácteos se tornaram uma parte menor de sua divisão global diversificada de alimentos. Assim como outras cooperativas no mundo, o negócio da Fonterra é dominado por um baixo valor final. A cooperativa tem algumas posições úteis de margem média na Ásia, África e Oriente Médio em produtos nutricionais e serviços alimentícios, mas esses são relativamente nichos. A receita da Fonterra desses negócios de maior valor ao consumidor tem sido essencialmente fraca por muitos anos.

Ao contrário das afirmações da indústria em 2001, formar a Fonterra não criou uma “massa crítica” para atingir sua visão de agregação de valor. Como notou a consultora britânica Promar International em seu relatório de 2001 para o Ministério da Agricultura e Pesca, a escala de eficiência mínima de produção para companhias globais de alimentos, cuja atividade central inclui a produção de leite e produtos lácteos, gera uma base total de ativos de mais de NZ$ 67 bilhões (US$ 42,55 bilhões) e receitas de NZ$ 111 bilhões (US$ 70,50 bilhões). A receita da Fonterra então era de NZ$ 10 bilhões (US$ 6,35 bilhões). Após 14 anos, ainda é de somente NZ$ 22 bilhões (US$ 13,97 bilhões).

Fonte: MilkPoint

Data da Publicação: 03/09/2015

http://www.milkpoint.com.br/cadeia-do-leite/giro-lacteo/fonterra-uma-analise-apos-14-anos-de-criacao-parte-i-de-ii-96749n.aspx

 

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